Nunca entendi a Patologia ou outras áreas correlatas dissociadas das demais especialidades, uma vez que o embasamento biológico e o conhecimento dos mecanismos etiopatogênicos são fundamentais para uma boa prática clínica. Para saber como resolver, você precisa saber por que aconteceu.
Porém, em muitos momentos de minha trajetória na Odontologia, observei que esses dois aspectos, embora indissociáveis, não conversaram. De um lado, uma estética com ênfase excessiva no resultado imediato, sem levar em consideração o respeito aos limites biológicos. Do outro, as chamadas disciplinas básicas, isoladas em seus próprios conceitos e enclausuradas em seus espaços acadêmicos.
Ponto para a revista FACE, que propõe uma Odontologia com todas as suas possibilidades e potencialidades, unindo, nesta coluna, a Estética e a Patologia, dois polos que nunca foram de fato opostos, e que possuem em comum o embasamento científico e a responsabilidade com a saúde de nossos pacientes de forma integral, conforme prevê a Organização Mundial da Saúde.
Exemplos dessa interação não faltam. Na origem embriológica, cavidade bucal e face não se desconectam, ambas ligadas diretamente ao ectoderma e ao mesoderma.
Além disso, a histopatologia da mucosa bucal inclui células comuns à epiderme e à derme, e a estruturação morfológica de ambas guarda estreita semelhança.
Grande parte das lesões que acometem a mucosa bucal possui correlação com alterações na pele e vice-versa, sendo as doenças mucocutâneas um capítulo importante do diagnóstico estomatológico.
No século 18, a obra “Tratado dos dentes para os cirurgiões-dentistas”, de Pierre Fauchard – considerado o pai da Odontologia moderna –, discorre sobre anatomia, fisiologia e patologias bucais, demonstrando, já naquela época, a interdependência entre um sorriso bonito e saudável com os fundamentos fisiopatológicos e a saúde geral.
A atuação legítima do cirurgião-dentista envolve, e sempre envolveu, as estruturas anatômicas do complexo bucomaxilofacial e suas manifestações patológicas.
No contexto da Harmonização Orofacial, os processos fisiopatológicos que ganham destaque incluem: 1) a reação inflamatória e seus desdobramentos relativos à cicatrização; 2) os efeitos adversos ligados à resposta imunológica; e 3) as condições locais e sistêmicas associadas.
Na primeira, o pleno conhecimento das fases aguda e crônica, bem como dos mediadores químicos e dos mecanismos de reparo, são importantes para o correto manejo clínico do edema, da necrose, da hiperpigmentação, de cicatrizes hipertróficas, da formação de queloides e do dimensionamento da terapêutica anti-inflamatória, entre outros.
Na segunda, as alterações imunomediadas (imediatas ou tardias) estão frequentemente presentes, quer seja na formação do granuloma de corpo estranho relativo ao uso de preenchedores ou na compreensão do chamado “efeito vacina” ligado à toxina botulínica, citando alguns exemplos.
Por último, a importância do reconhecimento, por parte do cirurgião-dentista, do carcinoma basocelular e epidermoide, do melanoma e das doenças mucocutâneas manifestadas na região de cabeça e pescoço, além da relação direta entre alterações hormonais, doenças autoimunes e infecções – apenas para citar algumas condições patológicas –, todas requerendo adequações no tratamento odontológico e implicando, eventualmente, em limitações para os procedimentos estéticos.
Estes são alguns dos inúmeros processos fisiopatológicos relacionados direta ou indiretamente à Harmonização Orofacial e que serão pormenorizados neste espaço nas próximas edições.
Para o bem ou para o mal, a Odontologia nunca esteve tão em evidência como agora, e é preciso serenidade para atender as demandas de mercado. O apelo midiático das redes sociais extrapola os preceitos biológicos e nos levou, através de nossos pacientes, a uma desenfreada corrida por padrões estéticos por vezes questionáveis. É preciso que o cirurgião-dentista, o condutor do trem, siga o fluxo dos fundamentos biológicos, pois os “vagões” estética e saúde estão inexoravelmente encarrilhados. Na locomotiva da Odontologia integral, sinto que a revista FACE nos coloca de volta aos trilhos.
Referências
1. Edelhoff D, Probst F, Ehrenfeld M, Prandtner O, Schweiger J, Liebermann A. Interdisciplinary full-mouth rehabilitation for redefining esthetics, function, and orofacial harmony. J Esthet Restor Dent. 2019 Jan 4.
2. Cauduro H. Minha Ciranda pela Odontologia – Fundador da RGO. In: . Publicado em: 11/01/2019.
3. Courtine, Jean-Jacques. História do corpo. Editora Vozes, 2011.
4. Mack MR. Perspective of facial esthetics in dental treatment planning. J Prosthet Dent 1996;75(2):169-76.
5. Nayak A, Rajpoot N, Nayak R, Nayak R. Analysis of morphologic attributes in dental esthetics: a new concept. Int J Periodontics Restorative Dent 2017;37(6):873-80.
6. Sarver D, Jacobson RS. The aesthetic dentofacial analysis. Clin Plast Surg 2007;34(3):369-94.
7. Scheithauer MO, Rettinger G. Operative treatment of functional facial skin disorders. GMS Curr Top Otorhinolaryngol Head Neck Surg 2005;4:Doc18.
Karine Piñera Doutora em Patologia – Medicina/USP; Especialista e Mestra em Patologia Bucal – FOB/USP; Especialista em Radiologia Odontológica – APCD/SP; Habilitação em Odontologia Hospitalar – Crosp. |
top parabens pelo artigo, me ajudou muito