Necessidade e desejo: a bola da vez entre os paradigmas

Necessidade e desejo: a bola da vez entre os paradigmas

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Oswaldo Scopin e Messias Rodrigues debatem: o desejo do paciente deve se sobrepor à sua real necessidade?

Necessidade e desejo

Por se tratar de uma área da Saúde, a Odontologia sempre teve uma abordagem voltada para a “manutenção e melhoria do sistema estomatognático”.

Em alguns países, para exercer a profissão de dentista, o interessado é obrigado a concluir antes o curso de Medicina. Isso mudou em quase todo o mundo, sendo que a maioria dos países tem cursos separados para as áreas de Medicina e Odontologia nos dias de hoje.

No Brasil, aprendemos de maneira integral e integrada todas as áreas que envolvem a face e a cavidade bucal. Na década de 1980, uma nova subdivisão surgiu, sendo marginalizada pelas entidades de classe em sua fase inicial: a Odontologia Estética.

Tratava-se de um campo de estudo que não fazia parte de nenhuma especialidade e, ao mesmo tempo, fazia parte de todas as áreas. A Ortodontia era baseada na análise facial; Prótese e Dentística, em padrões estéticos e funcionais; Periodontia e Implantodontia, inseparáveis da estética e, na Cirurgia Bucomaxilofacial, nem se fale. Mesmo assim, se alguém falasse que fazia “Odontologia Estética” era rotulado como “marqueteiro” e acusado de esquecer as bases da Saúde.

O tempo passou e o mundo mudou. Os sistemas adesivos passaram por uma evolução drástica, fazendo com que a Odontologia Estética passasse a fazer parte da vida de todo clínico geral ou especialista. Não existe Odontologia sem estética.

Com as mudanças de comportamento social e científico, a face como um todo passou a ser referência para avaliar a estética.

Para muitos, essa análise facial pode parecer recente, mas o planejamento guiado pela face faz parte do protocolo na Odontologia restauradora de muitas escolas desde a década de 19901, e há artigos que mostram sua importância. Desde o nosso primeiro curso, com Sidney Kina e Ronaldo Hirata no final dos anos 1990, a fotografia já era parte de todo processo restaurador.

Juntamente com esse fenômeno, o advento das mídias sociais e a exposição virtual intensa revelaram outros desejos de nossos pacientes. Não só os dentes importavam, era necessário ir além. Os profissionais de Odontologia, acostumados a planejar “guiados” pela face, começaram a prestar atenção em detalhes que poderiam melhorar a qualidade do tratamento estético oferecido aos seus pacientes. Assim surgiu, no meu entender, a Harmonização Orofacial (HOF).

O cirurgião-dentista devidamente treinado, com formação, educação adequada e regulamentada, pode atuar de maneira precisa na HOF. Fazendo um paralelo, na década de 1980, a Odontologia Estética foi tema e alvo de discussão dentro da classe sobre o limite de utilização da nomenclatura e dos procedimentos que o cirurgião-dentista poderia fazer. O tempo passou e novas divergências com outras áreas surgiram. Porém, o ponto de divergência, muitas vezes, não se resume a esse fator de nomenclatura e área de atuação.

A questão é: o desejo do paciente deve se sobrepor à sua real necessidade? Esta mesma pergunta foi feita inúmeras vezes aos profissionais de Odontologia na realização de casos de “lentes de contato”, cirurgias ortognáticas como motivações estéticas e não funcionais, ou mesmo para um periodontista ao decidir se extrai ou não um dente para substituí-lo por um implante.

Toda vez que houver estética envolvida, o questionamento ético vai aparecer, e a nossa classe vai ser sempre a mais cobrada. No início, a cirurgia plástica visava à recuperação da autoestima e da função de pacientes que sofriam traumas, como acidentes e queimaduras. Com o passar do tempo, os procedimentos passaram a se ocupar majoritariamente das necessidades estéticas. As críticas e o questionamento dos médicos de outras áreas foram intensos contra os cirurgiões plásticos, principalmente no início. Hoje, a Odontologia passa por algo semelhante: a dualidade entre necessidade e desejo do paciente.

Trata-se de uma prática comum nos dias de hoje, afinal os pacientes estão cada vez mais transferindo para profissionais da Saúde a responsabilidade por controlar o envelhecimento, recuperar a juventude e elevar sua autoestima.

Antes mesmo da explosão da HOF, isso já era uma preocupação para a Odontologia. Houve um debate intenso, por exemplo, sobre a realização de “lentes de contato” sem indicação e extração seletiva de dentes para colocação de implantes “estéticos”. Agora, existe uma procura imensa por procedimentos de HOF e, se o profissional se dedicar somente a esse tipo de tratamento, o fluxo de pacientes pode ser imenso.

Mas eu recomendo cuidado, mesmo àqueles que já fazem esses procedimentos há anos. A mensagem é: interprete o seu paciente. Entenda os seus anseios e desejos. Avalie a real necessidade de qualquer procedimento. Explique as eventuais intercorrências e esteja pronto técnica e juridicamente para qualquer intercorrência. Tenha como base as mais sólidas referências científicas, que ofereçam suporte às suas decisões ao longo do tratamento. Tenha em mente que alguns dos pacientes jamais ficarão satisfeitos com o resultado do tratamento.

Melhorar a autoestima, ser mais jovem e mais belo talvez já não seja o suficiente para alguém que foi buscar em um consultório odontológico o segredo da felicidade.

Referência

  1. Spear F. The maxillary central incisal edge: a key to esthetic and functional treatment planning. Compend Contin Educ Dent 1999;20(6):512-6.

A bola da vez entre os paradigmas

Durante estes meus 37 anos de trabalho como cirurgião-dentista, pude vivenciar praticamente todas as principais mudanças de paradigmas e evoluções pelas quais passamos, como os sistemas adesivos, a documentação fotográfica digital, as “lentes de contato” e, atualmente, os scanners intraorais e todo o fluxo digital que os acompanha. Na minha área, a Ortodontia, depois que a adesão permitiu a troca das bandas metálicas pela colagem direta de braquetes, vieram disjuntores, protratores mandibulares, autoligados e mini-implantes. Atualmente, a bola da vez são os alinhadores feitos com placas de acetato.

Estes aparelhos estão sendo aclamados como a nova Ortodontia do século 21. Como aconteceu com todas as mudanças citadas anteriormente, no surgimento de uma nova ideia, há inicialmente uma fase de adaptação seguida por uma fase de evolução, para que aí, então, esta novidade possa ser confiável e usada em larga escala – atualmente, creio que ainda estejamos na primeira fase.

Na verdade, trata-se de um aparelho 90% digital, pois a sua confecção se inicia com a leitura feita com scanner intraoral, passa pelo planejamento feito em computador e impressão de modelos em 3D, ficando apenas a parte final de confecção das placas em laboratório.

Estas facilidades significam algum investimento financeiro extra, além da incerteza de uma boa conclusão do caso, pois as principais fases citadas anteriormente, incluindo o planejamento, na maioria das vezes, são delegadas a outro colega ortodontista ou técnico em computação que opera o software.

Outra questão importante a ser colocada é que os alinhadores, como diz o nome, promovem alinhamento dentário e, diga-se de passagem, são muito eficientes neste quesito. No entanto, nos casos mais severos com mordidas cruzadas, grandes trespasses horizontais e/ou verticais, ainda teremos de esperar por alguma evolução.

Ao meu ver, o principal benefício trazido por esses novos aparelhos é que colegas de outras especialidades, como periodontistas e protesistas, podem resolver pequenos problemas por conta própria, como verticalização de molares, abertura de espaços para colocação de implantes, torque em raízes que estão fora do osso nos casos de retração gengival, entre outros. Estes pequenos movimentos ortodônticos são relativamente simples e podem ser facilmente planejados pelos especialistas de outras áreas, em conjunto com o ortodontista que executa o planejamento via software.

Enfim, creio que os alinhadores vieram pra ficar. Todavia, devemos ficar atentos, acompanhar de perto e principalmente dar tempo às novidades que envolvem grande mudança em nosso modus operandi.